Continuação da Entrevista de Leonardo Boff
"NA NOITE DE PASCOA ME LIGAM DE
ROMA: 'O PAPA MANDA DIZER QUE
VOCÊ ESTÁ LIVRE, PODE FALAR'."
Ricardo Kotscho - Incrível, isso foi em 92 e, até agora, oficialmente você continua.
Leonardo Boff - Continuo. Quer dizer, unilateralmente saí, mas até hoje o Vaticano não tomou uma posição, nada. No ano passado, numa palestra para umas 3.000 pessoas em Roma, dei com dureza em cima da instituição. Eles não reagiram.
Ricardo Kotscho - Mas o papa não fica conhecendo todo o processo, todos os detalhes?
Leonardo Boff - Ele é informado toda quinta-feira. Os cardeais se reúnem às quartas-feiras, são treze cardeais – o ministério central do Vaticano – que se reúnem e debatem as doutrinas que estão em voga, os textos, os teólogos etc. E na quinta o cardeal-chefe, que é o Ratzinger, tem uma hora com o papa para informá-lo como vai a teologia, como são as tendências, os teólogos, ele é informado passo a passo. O meu caso ele acompanhou. Na conversa que teve com dom Ivo, ele disse que sabia passo a passo, até lamentou, porque, quando fui condenado, veio apoio internacional, e ele disse: "O vilão sou eu e o Boff é o herói". E, segundo dom Ivo, chegou a chorar.
Chico Vasconcellos - Mas o papa é político...
Leonardo Boff - É, porque dom Ivo disse: "Pra nós, é um escândalo, porque no Brasil a Igreja lutou sempre contra a ditadura, que cortava a língua dos jornalistas, impedia a liberdade, e o senhor fez isso". Então, o papa: "Como, eu fiz isso?!" Aí se deu conta de que era uma medida contraditória. E queria desfazer a condenação. O cardeal Sales, eu soube depois por dom Paulo Evaristo, interveio: "Santidade, se o senhor suspender a condenação, o povo vai dizer que o papa erra, que o papa não sabe". Então, ele sustentou. Eu sei que, na noite de Páscoa, estava entrando na missa da meia-noite, cronometrado, aí me telefonam de Roma: "O papa manda dizer que você está livre, pode falar". Porque a proibição era pelo menos por um ano e, a partir desse tempo, eu podia ficar proibido por tempo indefinido, mas aos onze meses, na noite de Páscoa, ele pessoalmente mandou suspender. E depois, pelo cardeal Casaroli, escreveu uma carta agradecendo por eu ter acolhido o diálogo, me submetido, dizendo que "dessa forma é possível criar uma autêntica Teologia da Libertação". Quer dizer, uma carta que o Casaroli escreve, secretário de Estado, em nome do papa. E com isso encerrava a parte oficial deles. Terminou assim. Aí vem em 1992, quer dizer, cinco anos depois, aquela conversa durante a Eco, quando eu disse: "Não aceito mais". E aí me desliguei.
Ricardo Kotscho - Mudando de assunto, uma coisa que se conversa muito entre os católicos é a questão do celibato. Existe hoje um monte de gente insatisfeita dentro da Igreja por causa do celibato. E um monte de gente fora que poderia entrar e não entra por causa disso. Qual a importância do celibato pra quem está dentro da Igreja e pra quem está fora?
Leonardo Boff - O celibato, para esse tipo de Igreja que temos, é estrutural e necessário. Temos uma Igreja altamente concentrada em termos de poder, que está só na mão de uma mínima parte, que é o clero. E tem de gerenciar a primeira grande multinacional do Ocidente que é o cristianismo – desde o século 4 é uma multinacional, que envolve cerca de 1 bilhão de pessoas. Então, para a Igreja, o celibato é estratégico. Porque você tem uma mão-de-obra diretamente ligada a você e que não tem nenhum vínculo de família, de mulher, de filhos, de herança, e é o intelectual orgânico estrito da instituição. Ele encarna a instituição e, não sem razão, é tirado da família com a idade de 12, 13 anos, levado para o seminário e criado na sua mentalidade, na sua subjetividade, para servir a instituição. Ele é estruturado nessa perspectiva, que vai contra duas tendências básicas da modernidade, que são resgatar a liberdade e a subjetividade. Quer dizer, o ser humano se descobre como sujeito livre, que organiza sua privacidade, sua sexualidade, seu projeto pessoal. Se é casando, se é mantendo-se solteiro, se é sendo gay, não importa, você respeita as preferências do projeto que você tem. E a Igreja nega isso. Ela impõe que quem quer servi-la tem de ser celibatário. Então, frustra todo um caminho, que é um caminho também de realização humana, porque a sexualidade não é só uma questão de troca genital, é o diálogo com a dimensão da anima e do animus, como um integra a alteridade do outro, mulher ou homem respectivamente, como trabalho da dimensão da ternura, da fragilidade, do amor, que é uma exposição ao outro. O celibatário trabalha com grande dificuldade isso, porque ele, por força da educação e sua função, é autocentrado. E toda a dimensão do feminino, não só da mulher, mas do feminino no homem e na mulher, é encurtada. Então, esse é o primeiro problema. O segundo é o que tem a ver com o poder. E todo poder é autoritário, seja nazista/fascista, do Hitler ou Stálin, ele é altamente negador da ternura, da sexualidade, da intimidade. E na Igreja há isso, então é um poder altamente autoritário, no cânon que fala dos poderes do papa ele é absoluto, ilimitado, universal, sobre cada cristão, sobre toda a Igreja, e infalível. Se você risca papa e bota Deus, vale. Ele atribui a si características divinas. Então, é um poder que em teologia se chama totatus dictatus papa, expressão latina que se criou no século 14: é o dictatus papa, literalmente traduzido, "a ditadura do papa". Então, é essa a perspectiva de um poder altamente centralizado, piramidal e totalitário, que engloba tudo, não convive com a fragilidade do amor, da sexualidade. A essa estrutura pertence o celibato e também o poder mais imediato: você não tem partilha, não tem herança, não tem de se preocupar com a educação dos filhos, onde a mulher vai ficar, nada. Você se torna um soldado totalmente disponível à instituição, que pode mandá-lo a Hong Kong, pólo norte ou Rio de Janeiro.
Leo Gilson Ribeiro - O que foi, um tratado?
Leonardo Boff - Foi uma praxe, inicialmente. No campo, o celibato nunca funcionou, porque o padre era simultaneamente camponês e tinha de arranjar mão-de-obra, e não havia seminários onde se formassem padres. Ele gerava um filho, explicava como era a missa, os sacramentos e tinha o seu sucessor. No primeiro milênio, o celibato era reservado aos bispos, que tinham de ser monges celibatários. Com os padres era mais ou menos livre. O seminário só veio na polêmica com os protestantes no século 16, quando a Igreja cria a instituição de formação de seus quadros e aí impõe o celibato rigoroso. É assim até hoje. Agora, isso nunca foi algo que fosse entendido como do âmbito da tradição cristã, ou da revelação. É uma disciplina eclesiástica, portanto depende da vontade do príncipe.
"ACHO QUE A GENTE DEVIA TIRAR DO
FHC O TÍTULO DE INTELECTUAL,
PORQUE É UM FALSO INTELECTUAL ."
Ricardo Kotscho - Na sua vida pessoal, o que mudou? Era como se você estivesse a vida inteira dentro de uma prisão, dentro das regras da Igreja, e de repente você está livre disso, aí pode ter um monte de namoradas, casar, ter filhos, o que muda pra você isso?
Leonardo Boff - Tive a audácia de casar com uma mulher que já tinha seis filhos. Me acompanhava nos trabalhos, é uma mulher extremamente empenhada na luta das favelas, direitos humanos, é de uma família burguesa que se converteu a essa causa da teologia, dos pobres. E vi que o casamento, que a vida a dois é casar com um projeto também, casar com o sonho de uma vida, que você mistura, que você une. E também assumi a família dela. Acho importante dizer isso, porque implica uma ruptura também com a ditadura da Igreja. Um padre, teólogo, casa com uma desquitada.
Ricardo Kotscho - Aí também você fez strike, né? (risos)
Leonardo Boff - Quando o amor humano ocorre, ele tem a sua santidade, tem a sua presença sacramental. Não me importo se ela é casada, não é casada, se é desquitada ou não, desde que esse fenômeno ocorra e a gente possa assumir.
Sérgio de Souza - No começo, você falou de uma certa convivência com o Fernando Henrique Cardoso, no Cebrap.
Leonardo Boff - Convivência, digamos, funcional.
Sérgio de Souza - Você acha que ele mudou de lá pra cá?
Leonardo Boff - Acho que a gente devia tirar dele o título de intelectual, porque é um falso intelectual. Ele é um político. O intelectual pensa a sociedade a partir de um horizonte de utopia, em que toma a liberdade de dizer o que pensa e como vê as relações de poder: isso faz o reino do intelectual, quer dizer, a partir do ideal ele julga a sociedade. E o Fernando Henrique julga a sociedade a partir de um jogo de interesses, do qual ele é parte importante, e ele assume o poder dentro de um projeto que acho profundamente perverso, porque não significa nenhuma ruptura da herança de exclusão que teve este país. Os sujeitos históricos, que sempre detiveram o poder de uma forma autoritária, excludente, exploradora, são aqueles que compõem a base do governo do qual ele é presidente. Então, ele não representa nenhuma ruptura, ele consagra, com ares de intelectual, que considero falso, uma nova forma de dominação da sociedade brasileira. Então, acho que a gente devia destituí-lo como intelectual, considerá-lo político, com todas as virtudes de um político, que é pensar sempre numa intenção, isto é, numa segunda intenção. E,por isso, cheio de malícia.
Ricardo Kotscho - Quer dizer que você não se surpreendeu, porque muita gente fala que o Fernando Henrique mudou muito. Outros, que o conhecem bem, dizem que ele sempre foi assim, as pessoas é que tinham uma imagem errada dele.
Leonardo Boff - A construção teórica dele, que utilizamos na Teologia da Libertação e nos ajudou a ver o mecanismo do subdesenvolvimento, nos fazia entender que era possível uma ruptura. Quer dizer, um desenvolvimento auto-sustentado, que respondesse às demandas históricas daqui e que, por isso, implicava uma certa distância com os centros hegemônicos – isso estava dentro da construção teórica dele. E vejo que ele renunciou a essa convicção, ao nível da economia brasileira, e essa inserção do Brasil no mercado mundial ele discute sem receios de comprometer a soberania. Ele não tem preocupação de ter um projeto para esse povo. Projeto nacional, um país com uma situação geopolítica fantástica, uma biodiversidade fabulosa, experiência cultural singular, um país multiétnico, multicultural, quer dizer, isso vale no diálogo mundial e ele não sabe fazer, porque acho que não ama suficientemente este povo, ele ama o poder.
Sérgio Pinto - É um projeto de poder, ponto.
Leonardo Boff - É um projeto de poder em que ele se beneficia. Mas tem de qualificar esse poder, qual a natureza desse poder? É o velho poder oligárquico, excludente, da história brasileira, e ele não colaborou em nada para modificar isso. E aí penso que ele traiu a todos nós, porque depositamos na lucidez do intelectual, do sociólogo que conhece o mecanismo do poder, a esperança de que pudesse interferir e dar uma marca diferente. E ele não fez.
Sérgio de Souza - O benefício que você disse que ele conseguiu é só na vaidade pessoal ou...
Leonardo Boff - Eu pessoalmente acho o seguinte, talvez possa dizer entre caros amigos, não é? Acho que ele não acredita em absolutamente nada, nenhuma transcendência, é de um marxismo clássico, ateu e, para quem não tem uma transcendência da história – história é isso –, quem está no poder tem de se aproveitar do cavalo que passa encilhado, porque não tem mais nada além disso, nenhum projeto de longo alcance, em que haja a dimensão da renúncia, para construir uma base mais popular, mais ampla e dialética, acho que ele não tem isso.
Leo Gilson Ribeiro - Será que ele não terá raciocinado da seguinte maneira: dentro da hegemonia que se estabeleceu na Terra atualmente, não há ponto de saída a não ser a de tornar o Brasil um capitalismo dependente, marca do capitalismo?
Leonardo Boff - Isso é versão dele, que mostra a ausência da dimensão ética. Porque alguém pode chegar, dentro dessa realidade, dessa fatalidade, a ter como dimensão ética ainda a dimensão do protesto, de dizer: "Eu não aceito isso porque é iníquo, não quero ser um agente que consolida, que dá aval a isso". Eu diria que o processo da mundialização é um processo que transcende o econômico, o político, é pra mim um processo civilizatório, uma nova etapa da Terra, da humanidade, e não há como não entrar nisso. Agora, podemos entrar de uma maneira mais soberana, mais dialogal, sentar junto aos poderosos do mundo e colocar muitos argumentos, o que ele não faz. É servil, fazendo o jogo do norte. Ele não faz o jogo do sul. É subalterno, é uma integração subalterna, que prolonga o que sempre houve. Pra nós, a mundialização começou no século 16. O projeto de mundo do reino hispânico, Portugal e Espanha, não sofreu ruptura, tem continuidade até hoje.
Ricardo Kotscho - O que você vê hoje no horizonte, como sonho coletivo, uma luta coletiva, uma coisa que mobilize, que unifique as pessoas? O que você vê ainda capaz de levar o povo para a rua?
Leonardo Boff - Um tema que está mobilizando e possivelmente vai mobilizar mais, é o tema da terra, que é levado pelos sem-terra, mas por enquanto é levado mais para a terra de produção, terra do campo. No dia em que se unir campo e cidade, em que se discutir o tema da terra na cidade e o problema todo da favela, o direito à moradia e à terra no sentido mais contemporâneo, mais moderno, da terra como Gaia, não só terra de produção, mas terra como nosso próprio corpo, terra como prolongamento do planeta, vivo, supersistema altamente refinado e organizado...
Leo Gilson Ribeiro - A nossa mãe-terra.
Leonardo Boff - A nossa mãe-terra, grande pátria amada. Que é a visão dos povos originários, é a visão do camponês, a visão do nosso cotidiano, porque a visão científica é reducionista, vê a terra como composição desses cem elementos físicos/químicos da escala de Mendeleiev. A terra não é isso. A terra é paisagem, a terra fala, a terra é a mensagem que podemos escutar, e a terra também somos nós mesmos, os seres humanos. Então, se conseguirmos dramatizar que o valor supremo é preservar este planeta – e só temos este – porque ele está profundamente ameaçado e não tem uma arca de Noé que salve alguns dessa vez e deixe perder os outros, essa é a base para qualquer outro valor. E o segundo valor, o de preservar a família humana, a espécie humana junto às demais espécies, e garantir as condições para que ela subsista e continue a desabrochar, desenvolver-se. São os dois valores supremos de uma ética planetária, terrenal.
Sérgio de Souza - Isso decerto pressupõe uma luta.
Leonardo Boff - Penso que a gente devia consultar não quem está pensando essa questão, como nós que estamos aqui teoricamente falando sobre isso. Mas quem vive da terra, sente a terra e luta pela terra. Então, o que dá força e coesão aos sem-terra são os seus símbolos, os seus mártires, os pedaços de roupas que eles têm, os frutos que levam, a batata, a mandioca, o animalzinho... e que mostram como a vida é concreta e que está ligada à vida e à subsistência deles. E não só deles, de todo o mundo urbano. Quem produz o feijão e arroz que comemos?
Ricardo Kotscho - Isso é que eu ia falar dos sem-terra. Apesar de muitos, são uma minoria. A maioria são os com-terra, os pequenos proprietários que produzem 70, 80 por cento do que comemos. Não seria o caso de ouvi-los também?
Leonardo Boff - Lógico, ouvi-los e denunciar que não há uma política agrária no Brasil. Há uma política para a grande agroindústria, que é para a exportação, não para o mercado interno. Eu mesmo vi, estando anteontem com camponeses gaúchos desesperados, pessoas se suicidando, porque o preço da cebola, da batata, nunca houve tanta produção e é degradado o preço. Os meus parentes que cultivam lá em Concórdia, lá onde está a Sadia, em sessenta dias ganham 1.000 reais. Com uma superexploração, trabalhando quinze, dezesseis horas por dia. Se diz: "Todo mundo pode comer frango". Mas é à custa de camponeses que estão morrendo, não conseguem mais manter esse preço achatado. Não se escuta num diálogo o que significa isso, como a cidade vive do campo. Então, acho que uma dessas grandes causas – e é planetária – é essa. E a segunda é mais social. É a questão da cidadania. Porque se opõe à exclusão, que é um fenômeno novo. Antes, você tinha o marginalizado, o que estava à margem do sistema lutando para entrar e se desenvolver. Aquele que está fora hoje não se confronta com o sistema, se confronta com a morte. Porque pra ele não há projeto de saúde, nem de cesta básica, nem de casa, nem de escola, nada, ele está à margem. Qual a proposta para esses excluídos? É a cidadania como participação, uma sociedade em que todos possam caber. Neste país cabem 70, 80 milhões, os demais não cabem. São zeros econômicos, são excluídos, não entram na contabilidade. Para eles, o Estado não propõe nada. Então, aí entra o resgate da cidadania, não como valor meramente cívico, você ter direitos. Não, você tem direito de participar, você tem direito a um pedaço de terra, direito de comer, porque é filho dessa terra. E aí acho que a alternativa é criar economias paralelas, formas de produção alternativas, de melhoria do ingresso, que é o espírito cooperativo. Criar cooperativas o mais possível, como a gente está incentivando de novo a fazer. Pegar pneus e dos pneus fazer sandálias para vender, fazer artesanato, fazer quentinhas, mil formas como esses excluídos se organizam para poder garantir a subsistência. O espírito cooperativo seria uma alternativa fantástica para uma produção que não está no mercado, está à margem do mercado, e que satisfaz necessidades e atende necessidades, e criaria uma nova dinâmica social, romperíamos a ditadura do mercado, que se impõe a todo mundo, quem não está no mercado não existe, e apeado dele morre.
Roberto Freire - Estou sentindo que neste momento você está falando muito a respeito do que vejo como pensamento anarquista. Autogestão, por exemplo, é a coisa mais libertária que existe em matéria de produção.
Leonardo Boff - Cooperativas autogestionáveis, assim elas se definem, e há grupos pensando seriamente nisso.
Ricardo Kotscho - Já está acontecendo nos assentamentos.
Leonardo Boff - Exato. E resgatar a partir dessa categoria o que está sendo negado hoje – desenvolvimento, porque até hoje a Teologia da Libertação se fez contra a teoria do desenvolvimento, que vinha de cima para baixo, vinha do Estado. Agora tem de ser o desenvolvimento como categoria do sujeito coletivo do povo, das comunidades.
Marina Amaral - A doutrina cristã, como o senhor disse, é uma doutrina revolucionária. Não consigo entender como as pessoas que têm essa doutrina em mente vão para esses seminários, aceitam uma estrutura de Igreja que sabem que vai ser aquela. Queria entender por que essas pessoas procuram a Igreja e por que essa rebelião afinal é tão pequena perto de uma Igreja tão grande.
Leonardo Boff - Esse é um dos trabalhos pedagógicos mais sutis que a instituição faz sobre seus quadros. O padre, o seminarista é educado para ter um verdadeiro casamento com a instituição, aquilo que a pessoa dá em termos de libido, de amor à sua companheira, à sua mulher, ele é educado a dar à sua Igreja. Agora, há uma fase em que o padre desperta. Geralmente quando cai na vida real, como pároco, como agente de pastoral, aí ele se dá conta de que essa Igreja é uma grande madrasta. Que usa a força dele, sua libido, sua inteligência em favor dos interesses institucionais dela e não das pessoas humanas. Que ela não se interessa muito pelos problemas do homem da rua, que tem problema com limitação de natalidade, com eventual aborto, com fracasso no matrimônio e a vontade de começar um outro. Ela não se interessa, ela é fria e sem piedade e aplica a doutrina. E aí o padre entra em crise, fica entre o pastor que sente o próximo e a subjetividade que foi criada nele de ser o representante da instituição, da doutrina, e entra num conflito e muitos sucumbem nesse conflito. Ou ele abre e entra num novo estado de consciência e é um pastor que viola as doutrinas, ou ele se enrijece, recalca aquele mundo e fica o homem da instituição, do poder, da palavra rígida e até se transfigura. Ou então a terceira alternativa: muitos abandonam. E vão atrás das causas profundas que podem ser, digamos, o encontro com uma mulher. Não é apenas o encontro com uma mulher, quer dizer, ao encontrar a mulher e descobrir o mundo da intimidade, da ternura, da compreensão, do companheirismo, da vida como todos os mortais vivem, que é carregada de valores, e que isso foi tolhido a ele, diz: "Puxa, mas Deus não pode ser inimigo disso, Deus tem de ser pensado como um prolongamento disso ao infinito e não como corte disso". E muitos então saem. Profundamente frustrados com a instituição. Então, a educação é levada nesse sentido, por força do celibato você não pode ter o intercurso sexual. Então, a mulher se torna a tentação próxima. E você é educado a não olhar nos olhos da mulher, porque ela é tentadora, de nunca conversar com ela sozinho, sempre acompanhado de outros.
Leo Gilson Ribeiro - Mas os muçulmanos do Taliban também dizem isso.
Leonardo Boff - Porque é uma sociedade patriarcal e machista. Então, eu queria dizer o seguinte: que as mulheres tiveram uma grande função civilizatória junto aos padres. Que aqueles que se deixaram introduzir nesse diálogo, nesse encontro, se humanizaram, ficaram mais sensíveis, mais misericordiosos, mais compreensivos com o povo. Até podem viver o celibato, integrando essa dimensão, mas a ruptura foi a mulher que provocou neles, os ajudou a fazer a passagem, coisa que o seminário e nenhuma teoria teológica fazem.
Marina Amaral - E por que as freiras aceitam essa dominação? Freira não pode ser da hierarquia, freira não reza missa.
Leonardo Boff - Aí é todo um processo que a ideologia mostra. Quer dizer, você apresenta uma totalidade ideológica fechada, cheia de valores, inculca e cria uma subjetividade adequada a isso. O cristianismo poderia ser uma escola de humanidade, de generosidade, de compaixão. Se transformou num reduto de machismo, de rigidez, de ideologia compacta. Isso tem de ser denunciado, não tem nada a ver com a tradição que vem de Jesus. É uma tradição libertária, não diz "eu sou tradição", diz "eu sou a verdade, eu sou luz". E aqui o que vemos é a tradição, o império da reprodução do mesmo. Há uma geração de padres que fez mudanças fundamentais, passaram para o lado do povo, do feminino, sofreram muito, tiveram de reinterpretar o celibato e se reintegrar na dimensão mais feminina da vida e ganharam muita estatura. Desgraçadamente, a Igreja escolhe para substituir no episcopado só aqueles que vêm do estrito celibato. Um dos itens novos que introduziram do padre candidato a bispo é se nunca criticou o papa, se nunca criticou o celibato. Se alguma vez fez crítica ao celibato, não é nomeado bispo. O que revela a fraqueza da instituição. Ela não é mais vulnerável ao diálogo, ao crescimento, ela tem de usar a força simbólica para se impor.
Sérgio de Souza - E quem mais denuncia isso, além dos teólogos da Igreja?
Leonardo Boff - Na Igreja há um discurso absolutamente farisaico. Você conversa com um bispo, se ele está entre caros amigos, diz tudo o que estou dizendo. Cai na rua, "não posso dizer porque vou ser demitido, vai ter briga com o Vaticano, a CNBB cai em cima de mim, não posso falar". E muitos teólogos que pensam assim têm de dar aulas segundo os ditames, senão são depostos pela cátedra, "perco minha paróquia, caio no mundo, e tenho de buscar outro caminho". Então, a Igreja, a instituição, essa instância central de governo, obriga as pessoas a ser falsas por elas mesmas, hipócritas.
Chico Vasconcellos - Como se constitui o poder na Igreja?
Leonardo Boff – Primeiro, o Vaticano, com os seus mistérios, os encarregados da educação, dos bispos, das religiosas, dos padres, da doutrina, que são verdadeiros ministérios. O papa em si com seus ministérios, um governo centralizado onde tem informação do mundo inteiro, informação hoje já informatizada.
Chico Vasconcellos - Quantos homens fazem parte desses ministérios?
Leonardo Boff - Uma vez perguntaram a João XXIII quantos trabalhavam no Vaticano, ele disse: "Metade...". Acho que são 11.000 funcionários.
Chico Vasconcellos - Esse colégio de cardeais que dominam, quantos são?
Leonardo Boff - Cardeais são uns 150, mais ou menos, no mundo. O Vaticano deve ter uns trinta.
Ricardo Kotscho - O papa não é uma rainha da Inglaterra?
Leonardo Boff - Não, ele escolhe. A força dele é poder escolher os seus assessores diretos, que é o chamado Corpo do Papa, pessoas que pensam e agem como ele. A quem ele delega todo poder.
Frei Betto - O projeto estratégico é dele?
Leonardo Boff - O projeto estratégico é dele. Por outro lado, há uma grande resistência da máquina, de quem está por baixo. Por exemplo, temos três, quatro cardeis da Cúria Romana que fazem o nosso jogo, que nos defendem, empurram nossos textos em cima dos cardeais, mandam briefings, a luta ideológica é bárbara lá dentro.
Chico Vasconcellos - Desses cento e tantos cardeais, quantos são do Primeiro Mundo e quantos são do Terceiro?
Leonardo Boff - Hoje, 52 por cento dos católicos vivem no Terceiro Mundo. Para mostrar uma certa contradição entre o poder da base e o poder da representação, isso significa, primeiro, que o cristianismo hoje é uma religião do Terceiro Mundo, que teve origem no Primeiro Mundo. Isso é importante constatar. Segundo, que esse poder real, que é numérico, que garante o futuro institucional da Igreja, não é adequadamente representado no aparelho central do Vaticano. Acho que um terço dos cardeais é de italianos, mais de cinqüenta cardeais italianos, o que é uma inflação fantástica em termos de poder. E acho que dois terços são do Primeiro Mundo. Isto é, Europa, Estados Unidos, porque aí joga muito uma questão numérico-econômica, quer dizer, poder real da Igreja. Uma diocese como Nova York, como Chicago, que são extremamente ricas, ou como o Rio de Janeiro, ganha cardeal por quê? Porque articula interesses da Igreja, que tem reprodução na economia, nos investimentos, essa coisa toda, e que são reforço na aliança que o Vaticano faz com os poderes desse mundo, porque é um poder que busca aliança com outros poderes. É um poder espiritual, mas é um poder que sempre tem algo a dizer na política, nos negócios também.
Leo Gilson Ribeiro - Existe alguma tendência dissimulada de um certo racismo na Igreja, com uma predominância do hemisfério norte branco?
Leonardo Boff - Eu não diria racismo, diria uma discriminação cultural. Eles consideram a grande cultura da Europa, que é a cultura que nasceu cristã. Agora, eles têm um senso de eqüidade no sentido de universalidade. Isso o Vaticano herdou da tradição romana. Então, eles têm dois corpos grandes, o corpo doutrinário, que representa o corpo jurídico dos imperadores, que é a Congregação da Doutrina e da Fé, que zela pela unidade dos símbolos e da doutrina; e o segundo corpo, que é a fábrica de fazer bispos, a Congregação dos Bispos. Isto é, quem você vai eleger no mundo que esteja afinado com o governo central e ao mesmo tempo enraizado na sua cultura. Então, a importância do dom Lucas Neves é que ele foi cardeal da fábrica de bispos.
Leo Gilson Ribeiro - Uma linha de montagem...
Leonardo Boff - Linha de montagem. Então, essas duas instituições são fundamentais para o Vaticano. Por outra parte, é um corpo contraditório, porque ele, na força de atender várias culturas, na África, nos Estados Unidos, aqui, na Europa, Leste etc., não pode ter um discurso muito uniforme, porque se torna incompreensível. Por isso, o Vaticano produz um discurso profundamente ambíguo, um discurso de grande multinacional, que representa muitos interesses e para preservar o papa como príncipe da unidade, de fé, de política, de liturgia...
Leo Gilson Ribeiro - É o unipartidarismo?
Leonardo Boff - É o partido do papa, quem se opõe a ele é logo perseguido.
Ricardo Kotscho - Existe uma possibilidade, mesmo remota, de que alguém como o dom Paulo Evaristo possa ser eleito papa?
Leonardo Boff - Possibilidade existe, quer dizer, é o imponderável. Olha, neste momento os cardeais estão viajando muito, porque eles se dão conta de que o pontificado do papa já se encerrou em termos de estratégia, de tudo... ele já fez o que tinha de fazer, e eles governam a Igreja sem Wojtyla, supõem Wojtyla já morto em termos estratégicos. Então, a luta agora é entre duas grandes tendências. Uma é a tendência wojtyliana, porque mais da metade dos cardeais eleitores foi feita por ele e existe uma espécie de pacto entre os cardeais, que é o de você sempre respeitar a memória daquele papa que o fez cardeal – é a que eles chamam de "tendência-testemunho", que parte do seguinte: a Igreja é a única portadora da revelação da verdade, não tem de dialogar com as outras igrejas ou religiões. A segunda, que é de Paulo VI e João XXIII, hoje representada pelo cardeal Martini, de Milão, é chamada de "tendência do diálogo e da mediação". Que quer dizer dialogar com todas as culturas, religiões, caminhos espirituais, porque todas têm Deus por trás e você tem algo a aprender. E propiciar esse diálogo para criar ambiente de paz religiosa, paz política, valorização da dimensão espiritual nos humanos, sejam muçulmanos, budistas ou cristãos, e o papa como interlocutor grandioso de uma cultura ocidental. E o cardeal Martini é um jesuíta altamente inteligente, viveu no Oriente Médio, entre os muçulmanos, domina o judaísmo, foi professor de judaísmo a vida inteira, tem um diálogo fantástico com as religiões do Oriente, que conhece profundamente. Então, é um dos grandes cardeais. Ou o cardeal Sing, de Hong Kong, educado em Roma. Mas que tem toda a tradição chinesa. É um dos fortes candidatos. Então, tem o cardeal Ruini – que é o mais fiel seguidor do Wojtyla, que faz a política com os grandes, mesmo que seja a máfia, contanto que reforce a instituição – como um dos grandes candidatos daquela ala. Da outra ala tem o Martini e o cardeal Sing. Então, hoje se dá essa polêmica. E os cardeais já estão viajando, trocando informações, com um deles até já conversei. Estão fazendo consultas, porque se dão conta de que, num processo de mundialização, ou a Igreja capta esse movimento ou ela se isola no Ocidente. Eles estão numa grande encruzilhada. E se dão conta de que todo o fluxo da história está passando pelo Sudeste asiático. Lá está o novo centro econômico mundial...
"HOUVE UM MOMENTO EM QUE EU
TINHA PERDIDO A ESPERANÇA, QUE
É PIOR DO QUE PERDER A FÉ ."
Ricardo Kotscho - Há possibilidade de termos um papa chinês, é isso?
Leonardo Boff - Possivelmente, oriental.
Ricardo Kotscho - Então fale um pouco mais dele, nunca ouvi falar.
Leonardo Boff - Uma vez participei de um encontro que houve em Hong Kong, um grupo de teólogos aqui, você estava, não é, Betto?
Frei Betto - Estava, foi quando a gente voltou da China, ele perguntou sobre as CEBs.
Leonardo Boff - É um homem muito aberto, fez teologia em Roma, conhece Roma, mas profundamente chinês, querendo abrir para a China, querendo que a Igreja que está lá se enraíze dentro da China, que não fique apenas um pedaço do Ocidente lá dentro. Quer dizer, um homem do nosso lado. Ele encarna o cristianismo. Os cardeais, quando vão eleger o papa, fazem uma análise de conjuntura muito grande. Primeiro, captar o sentido de "para onde vai o cristianismo, quais são os seus desafios, que chances ele tem de crescer ou de diminuir na concorrência com os muçulmanos que temos de fazer, porque em 2010 eles serão mais que nós", porque há uma conversão em massa da África para os muçulmanos. E ainda que a Igreja tenha de fazer alianças para manter os seus valores ocidentais – família indissolúvel, não aceitação do aborto, da contracepção... aquela coisa toda. Quer dizer, "que alianças políticas temos de fazer para nos mover, manter e criar civilizações" – medem cada país. Estados Unidos, América Latina etc. Quando acabam de fazer essa análise – "Qual de nós aqui é o mais adequado a essa conjuntura?" –, então pintam o cenário e, para esse cenário, há um papa que seja razoável. Aí entram a idade, a cultura dele, a capacidade de diálogo, as alianças que ele tem na base para poder ter um governo que o sustente, porque a Cúria pode boicotar, e ela é terrível nisso. E é aí que eles elegem. E há o imponderável, sabe? Conversei com um grande vaticanólogo, o Zizola, que entende disso, e ele me disse: "Esse papa humilhou tanto os cardeais, as conferências nacionais, que ninguém mais quer saber dele. Querem derrubar o wojtylianismo. Vai ser uma desgraça, foi um retrocesso enorme. A Igreja se enrijeceu, voltada para dentro, criou conflitos em todas as conferências, teólogos punidos, bispos castigados, conferências rebeladas porque foram muito humilhadas, submetidas por Roma". Então, ninguém quer saber dele e esses cardeais que foram feitos por ele também sabem, pensam maior.
Ricardo Kotscho - Qual é o significado de o papa vir ao Brasil pela terceira vez?
Leonardo Boff - Isso é da política latino-americana, reforçar o lado mais conservador, ligado à família tradicional. Qual é a família que eles defendem? A do pequeno-burguês, estabelecida, fiel etc., que não é a família real da sociedade contemporânea.
Sérgio Pinto - E o governo brasileiro, durante o seu embate com o Vaticano, como se portou?
Leonardo Boff - Aqui, não sei. Sei que o caso da Teologia da Libertação movimentou estratos importantes da burguesia européia e católica. O cardeal Ratzinger, de vez em quando, se encontra com grandes industriais alemães, passam o dia juntos, eles têm subsidiado enormemente as causas da Igreja contra a Teologia da Libertação, que vêem aliada ao marxismo, processo de instabilidade social, e os governos entraram, os próprios Estados Unidos, com aquele famoso texto da Carta de Santa Fé, que dizia que a Teologia da Libertação é um risco para a segurança dos Estados Unidos, por ser um fator de desestabilização na América Latina. E a partir daí foi colocado um posto de vigilância muito maior sobre os bispos, comunidades de base, houve prisão, tortura, ao largo do continente todo há uma infinidade de mortos e vítimas desse processo. Uma vez consultei o ministro das Relações Exteriores, o Silveira, que foi de dois governos, e ele me disse: "Fomos instruídos para repassar ao Vaticano a atividade ideológica e política que a fé vinha recebendo no Brasil mediante padres de formação marxista e que a Igreja, não tanto o governo" – porque sabiam que era complicado prender padres –, "devia fazer a vigilância sobre os seminários e esses quadros".
Roberto Freire - "Comunismo" é ainda usado como argumento?
Leonardo Boff - Um dos argumentos que o Ratzinger usou num encontro de teólogos alemães, e que deve ser tomado em consideração, foi: "O marxismo morreu como ideologia, morreu como força política organizadora dos Estados, mas ele sobrevive na Teologia da Libertação, que funciona como cavalo de Tróia para penetrar no meio dos pobres. Devemos redobrar a vigilância sobre essa teologia".
Ricardo Kotscho - Houve algum momento em que você quase desanimou, perdeu a fé, que você tenha pensado "Deus não existe, não é possível", houve esse momento?
Leonardo Boff - Houve um momento e eu até disse isso, porque tinha perdido a esperança. Que é pior do que perder a fé. Quando o Vaticano interveio na Vozes em 1992, depuseram toda a direção, nomearam um alemão como interventor, que a primeira coisa que fez foi pegar os nossos livros e mandar picotar e queimar. Pegou o arquivo todo da Teologia da Libertação, aquela coleção de cinqüenta tomos, trabalho fantástico de bispos, de teólogos de toda a América Latina, pegou aquilo e jogou no lixo, para ser levado pelos caminhões: ainda consegui correr atrás e salvar. E disse que a Vozes, eu e a Teologia da Libertação fizemos uma chaga muito grande na Igreja e que essa chaga devia ser sanada. E deu uma guinada fantástica na Vozes, que passou a ser uma editora de direita, fechada, contra a Teologia da Libertação. E virou censor pessoal meu. Cada artiguinho que eu fazia ele corrigia tanto, que não dava nem pra publicar. Senti uma profunda humilhação da inteligência: uma editora que ajudou a pensar o Brasil mais à esquerda, o cristianismo mais de libertação, sofrer esse tipo de intervenção. Aí eu digo: "Não, isso é injusto. Um editor que manda queimar livros, como pode ser um editor?"
Chico Vasconcellos - A minha última pergunta seria a que sua mãe lhe fez: como é que um padre não vê Deus? Como é, você já viu Deus, como é Deus?
Leonardo Boff - Acho que a gente vê com os olhos interiores. Talvez a gente não veja, mas sinta Deus. Acho que toda vez que a gente sente entusiasmo, de levantar de manhã e ter de começar o dia, ter capacidade de estender a mão ao outro... Deus não é um objeto, não é uma entidade, é uma suprema paixão, suprema energia, o que os gregos de uma maneira genial disseram e eu gostaria de dizer, porque ela está presente em nossa língua, que é a palavra "entusiasmo". Em grego, entusiasmo significa ente os mos "ter um Deus dentro". Então, todo o entusiasmo é a essência da vida, é a energia que faz a vida viver. Creio que é essa realidade que penetra em tudo e não se deixa captar, e sem a qual não entendemos nosso vigor, nossa esperança, nosso sonho, nosso entusiasmo, que escapa continuamente e, ao mesmo tempo, nos desafia pra frente e pra cima. Penso que isso é Deus. E cultivar esse espaço, manter a devoção, manter o encantamento e deixar que isso se irradie é obra de alguém que é inteiro. Porque, como disse Santa Teresa, quando se trata de comer galinhas, então comer galinhas, quando se trata de jejuar, então jejuar, quando se trata de lutar ao lado dos sem-terra, lutar com os sem-terra, quando se trata de escrever um artigo, ser inteiro na escritura do artigo. Acho que essa capacidade é aquilo que é a ressonância, que é o resultado da presença secreta, sutil, dessa paixão, desse fogo interior, que nós chamamos Deus.
ROMA: 'O PAPA MANDA DIZER QUE
VOCÊ ESTÁ LIVRE, PODE FALAR'."
Ricardo Kotscho - Incrível, isso foi em 92 e, até agora, oficialmente você continua.
Leonardo Boff - Continuo. Quer dizer, unilateralmente saí, mas até hoje o Vaticano não tomou uma posição, nada. No ano passado, numa palestra para umas 3.000 pessoas em Roma, dei com dureza em cima da instituição. Eles não reagiram.
Ricardo Kotscho - Mas o papa não fica conhecendo todo o processo, todos os detalhes?
Leonardo Boff - Ele é informado toda quinta-feira. Os cardeais se reúnem às quartas-feiras, são treze cardeais – o ministério central do Vaticano – que se reúnem e debatem as doutrinas que estão em voga, os textos, os teólogos etc. E na quinta o cardeal-chefe, que é o Ratzinger, tem uma hora com o papa para informá-lo como vai a teologia, como são as tendências, os teólogos, ele é informado passo a passo. O meu caso ele acompanhou. Na conversa que teve com dom Ivo, ele disse que sabia passo a passo, até lamentou, porque, quando fui condenado, veio apoio internacional, e ele disse: "O vilão sou eu e o Boff é o herói". E, segundo dom Ivo, chegou a chorar.
Chico Vasconcellos - Mas o papa é político...
Leonardo Boff - É, porque dom Ivo disse: "Pra nós, é um escândalo, porque no Brasil a Igreja lutou sempre contra a ditadura, que cortava a língua dos jornalistas, impedia a liberdade, e o senhor fez isso". Então, o papa: "Como, eu fiz isso?!" Aí se deu conta de que era uma medida contraditória. E queria desfazer a condenação. O cardeal Sales, eu soube depois por dom Paulo Evaristo, interveio: "Santidade, se o senhor suspender a condenação, o povo vai dizer que o papa erra, que o papa não sabe". Então, ele sustentou. Eu sei que, na noite de Páscoa, estava entrando na missa da meia-noite, cronometrado, aí me telefonam de Roma: "O papa manda dizer que você está livre, pode falar". Porque a proibição era pelo menos por um ano e, a partir desse tempo, eu podia ficar proibido por tempo indefinido, mas aos onze meses, na noite de Páscoa, ele pessoalmente mandou suspender. E depois, pelo cardeal Casaroli, escreveu uma carta agradecendo por eu ter acolhido o diálogo, me submetido, dizendo que "dessa forma é possível criar uma autêntica Teologia da Libertação". Quer dizer, uma carta que o Casaroli escreve, secretário de Estado, em nome do papa. E com isso encerrava a parte oficial deles. Terminou assim. Aí vem em 1992, quer dizer, cinco anos depois, aquela conversa durante a Eco, quando eu disse: "Não aceito mais". E aí me desliguei.
Ricardo Kotscho - Mudando de assunto, uma coisa que se conversa muito entre os católicos é a questão do celibato. Existe hoje um monte de gente insatisfeita dentro da Igreja por causa do celibato. E um monte de gente fora que poderia entrar e não entra por causa disso. Qual a importância do celibato pra quem está dentro da Igreja e pra quem está fora?
Leonardo Boff - O celibato, para esse tipo de Igreja que temos, é estrutural e necessário. Temos uma Igreja altamente concentrada em termos de poder, que está só na mão de uma mínima parte, que é o clero. E tem de gerenciar a primeira grande multinacional do Ocidente que é o cristianismo – desde o século 4 é uma multinacional, que envolve cerca de 1 bilhão de pessoas. Então, para a Igreja, o celibato é estratégico. Porque você tem uma mão-de-obra diretamente ligada a você e que não tem nenhum vínculo de família, de mulher, de filhos, de herança, e é o intelectual orgânico estrito da instituição. Ele encarna a instituição e, não sem razão, é tirado da família com a idade de 12, 13 anos, levado para o seminário e criado na sua mentalidade, na sua subjetividade, para servir a instituição. Ele é estruturado nessa perspectiva, que vai contra duas tendências básicas da modernidade, que são resgatar a liberdade e a subjetividade. Quer dizer, o ser humano se descobre como sujeito livre, que organiza sua privacidade, sua sexualidade, seu projeto pessoal. Se é casando, se é mantendo-se solteiro, se é sendo gay, não importa, você respeita as preferências do projeto que você tem. E a Igreja nega isso. Ela impõe que quem quer servi-la tem de ser celibatário. Então, frustra todo um caminho, que é um caminho também de realização humana, porque a sexualidade não é só uma questão de troca genital, é o diálogo com a dimensão da anima e do animus, como um integra a alteridade do outro, mulher ou homem respectivamente, como trabalho da dimensão da ternura, da fragilidade, do amor, que é uma exposição ao outro. O celibatário trabalha com grande dificuldade isso, porque ele, por força da educação e sua função, é autocentrado. E toda a dimensão do feminino, não só da mulher, mas do feminino no homem e na mulher, é encurtada. Então, esse é o primeiro problema. O segundo é o que tem a ver com o poder. E todo poder é autoritário, seja nazista/fascista, do Hitler ou Stálin, ele é altamente negador da ternura, da sexualidade, da intimidade. E na Igreja há isso, então é um poder altamente autoritário, no cânon que fala dos poderes do papa ele é absoluto, ilimitado, universal, sobre cada cristão, sobre toda a Igreja, e infalível. Se você risca papa e bota Deus, vale. Ele atribui a si características divinas. Então, é um poder que em teologia se chama totatus dictatus papa, expressão latina que se criou no século 14: é o dictatus papa, literalmente traduzido, "a ditadura do papa". Então, é essa a perspectiva de um poder altamente centralizado, piramidal e totalitário, que engloba tudo, não convive com a fragilidade do amor, da sexualidade. A essa estrutura pertence o celibato e também o poder mais imediato: você não tem partilha, não tem herança, não tem de se preocupar com a educação dos filhos, onde a mulher vai ficar, nada. Você se torna um soldado totalmente disponível à instituição, que pode mandá-lo a Hong Kong, pólo norte ou Rio de Janeiro.
Leo Gilson Ribeiro - O que foi, um tratado?
Leonardo Boff - Foi uma praxe, inicialmente. No campo, o celibato nunca funcionou, porque o padre era simultaneamente camponês e tinha de arranjar mão-de-obra, e não havia seminários onde se formassem padres. Ele gerava um filho, explicava como era a missa, os sacramentos e tinha o seu sucessor. No primeiro milênio, o celibato era reservado aos bispos, que tinham de ser monges celibatários. Com os padres era mais ou menos livre. O seminário só veio na polêmica com os protestantes no século 16, quando a Igreja cria a instituição de formação de seus quadros e aí impõe o celibato rigoroso. É assim até hoje. Agora, isso nunca foi algo que fosse entendido como do âmbito da tradição cristã, ou da revelação. É uma disciplina eclesiástica, portanto depende da vontade do príncipe.
"ACHO QUE A GENTE DEVIA TIRAR DO
FHC O TÍTULO DE INTELECTUAL,
PORQUE É UM FALSO INTELECTUAL ."
Ricardo Kotscho - Na sua vida pessoal, o que mudou? Era como se você estivesse a vida inteira dentro de uma prisão, dentro das regras da Igreja, e de repente você está livre disso, aí pode ter um monte de namoradas, casar, ter filhos, o que muda pra você isso?
Leonardo Boff - Tive a audácia de casar com uma mulher que já tinha seis filhos. Me acompanhava nos trabalhos, é uma mulher extremamente empenhada na luta das favelas, direitos humanos, é de uma família burguesa que se converteu a essa causa da teologia, dos pobres. E vi que o casamento, que a vida a dois é casar com um projeto também, casar com o sonho de uma vida, que você mistura, que você une. E também assumi a família dela. Acho importante dizer isso, porque implica uma ruptura também com a ditadura da Igreja. Um padre, teólogo, casa com uma desquitada.
Ricardo Kotscho - Aí também você fez strike, né? (risos)
Leonardo Boff - Quando o amor humano ocorre, ele tem a sua santidade, tem a sua presença sacramental. Não me importo se ela é casada, não é casada, se é desquitada ou não, desde que esse fenômeno ocorra e a gente possa assumir.
Sérgio de Souza - No começo, você falou de uma certa convivência com o Fernando Henrique Cardoso, no Cebrap.
Leonardo Boff - Convivência, digamos, funcional.
Sérgio de Souza - Você acha que ele mudou de lá pra cá?
Leonardo Boff - Acho que a gente devia tirar dele o título de intelectual, porque é um falso intelectual. Ele é um político. O intelectual pensa a sociedade a partir de um horizonte de utopia, em que toma a liberdade de dizer o que pensa e como vê as relações de poder: isso faz o reino do intelectual, quer dizer, a partir do ideal ele julga a sociedade. E o Fernando Henrique julga a sociedade a partir de um jogo de interesses, do qual ele é parte importante, e ele assume o poder dentro de um projeto que acho profundamente perverso, porque não significa nenhuma ruptura da herança de exclusão que teve este país. Os sujeitos históricos, que sempre detiveram o poder de uma forma autoritária, excludente, exploradora, são aqueles que compõem a base do governo do qual ele é presidente. Então, ele não representa nenhuma ruptura, ele consagra, com ares de intelectual, que considero falso, uma nova forma de dominação da sociedade brasileira. Então, acho que a gente devia destituí-lo como intelectual, considerá-lo político, com todas as virtudes de um político, que é pensar sempre numa intenção, isto é, numa segunda intenção. E,por isso, cheio de malícia.
Ricardo Kotscho - Quer dizer que você não se surpreendeu, porque muita gente fala que o Fernando Henrique mudou muito. Outros, que o conhecem bem, dizem que ele sempre foi assim, as pessoas é que tinham uma imagem errada dele.
Leonardo Boff - A construção teórica dele, que utilizamos na Teologia da Libertação e nos ajudou a ver o mecanismo do subdesenvolvimento, nos fazia entender que era possível uma ruptura. Quer dizer, um desenvolvimento auto-sustentado, que respondesse às demandas históricas daqui e que, por isso, implicava uma certa distância com os centros hegemônicos – isso estava dentro da construção teórica dele. E vejo que ele renunciou a essa convicção, ao nível da economia brasileira, e essa inserção do Brasil no mercado mundial ele discute sem receios de comprometer a soberania. Ele não tem preocupação de ter um projeto para esse povo. Projeto nacional, um país com uma situação geopolítica fantástica, uma biodiversidade fabulosa, experiência cultural singular, um país multiétnico, multicultural, quer dizer, isso vale no diálogo mundial e ele não sabe fazer, porque acho que não ama suficientemente este povo, ele ama o poder.
Sérgio Pinto - É um projeto de poder, ponto.
Leonardo Boff - É um projeto de poder em que ele se beneficia. Mas tem de qualificar esse poder, qual a natureza desse poder? É o velho poder oligárquico, excludente, da história brasileira, e ele não colaborou em nada para modificar isso. E aí penso que ele traiu a todos nós, porque depositamos na lucidez do intelectual, do sociólogo que conhece o mecanismo do poder, a esperança de que pudesse interferir e dar uma marca diferente. E ele não fez.
Sérgio de Souza - O benefício que você disse que ele conseguiu é só na vaidade pessoal ou...
Leonardo Boff - Eu pessoalmente acho o seguinte, talvez possa dizer entre caros amigos, não é? Acho que ele não acredita em absolutamente nada, nenhuma transcendência, é de um marxismo clássico, ateu e, para quem não tem uma transcendência da história – história é isso –, quem está no poder tem de se aproveitar do cavalo que passa encilhado, porque não tem mais nada além disso, nenhum projeto de longo alcance, em que haja a dimensão da renúncia, para construir uma base mais popular, mais ampla e dialética, acho que ele não tem isso.
Leo Gilson Ribeiro - Será que ele não terá raciocinado da seguinte maneira: dentro da hegemonia que se estabeleceu na Terra atualmente, não há ponto de saída a não ser a de tornar o Brasil um capitalismo dependente, marca do capitalismo?
Leonardo Boff - Isso é versão dele, que mostra a ausência da dimensão ética. Porque alguém pode chegar, dentro dessa realidade, dessa fatalidade, a ter como dimensão ética ainda a dimensão do protesto, de dizer: "Eu não aceito isso porque é iníquo, não quero ser um agente que consolida, que dá aval a isso". Eu diria que o processo da mundialização é um processo que transcende o econômico, o político, é pra mim um processo civilizatório, uma nova etapa da Terra, da humanidade, e não há como não entrar nisso. Agora, podemos entrar de uma maneira mais soberana, mais dialogal, sentar junto aos poderosos do mundo e colocar muitos argumentos, o que ele não faz. É servil, fazendo o jogo do norte. Ele não faz o jogo do sul. É subalterno, é uma integração subalterna, que prolonga o que sempre houve. Pra nós, a mundialização começou no século 16. O projeto de mundo do reino hispânico, Portugal e Espanha, não sofreu ruptura, tem continuidade até hoje.
Ricardo Kotscho - O que você vê hoje no horizonte, como sonho coletivo, uma luta coletiva, uma coisa que mobilize, que unifique as pessoas? O que você vê ainda capaz de levar o povo para a rua?
Leonardo Boff - Um tema que está mobilizando e possivelmente vai mobilizar mais, é o tema da terra, que é levado pelos sem-terra, mas por enquanto é levado mais para a terra de produção, terra do campo. No dia em que se unir campo e cidade, em que se discutir o tema da terra na cidade e o problema todo da favela, o direito à moradia e à terra no sentido mais contemporâneo, mais moderno, da terra como Gaia, não só terra de produção, mas terra como nosso próprio corpo, terra como prolongamento do planeta, vivo, supersistema altamente refinado e organizado...
Leo Gilson Ribeiro - A nossa mãe-terra.
Leonardo Boff - A nossa mãe-terra, grande pátria amada. Que é a visão dos povos originários, é a visão do camponês, a visão do nosso cotidiano, porque a visão científica é reducionista, vê a terra como composição desses cem elementos físicos/químicos da escala de Mendeleiev. A terra não é isso. A terra é paisagem, a terra fala, a terra é a mensagem que podemos escutar, e a terra também somos nós mesmos, os seres humanos. Então, se conseguirmos dramatizar que o valor supremo é preservar este planeta – e só temos este – porque ele está profundamente ameaçado e não tem uma arca de Noé que salve alguns dessa vez e deixe perder os outros, essa é a base para qualquer outro valor. E o segundo valor, o de preservar a família humana, a espécie humana junto às demais espécies, e garantir as condições para que ela subsista e continue a desabrochar, desenvolver-se. São os dois valores supremos de uma ética planetária, terrenal.
Sérgio de Souza - Isso decerto pressupõe uma luta.
Leonardo Boff - Penso que a gente devia consultar não quem está pensando essa questão, como nós que estamos aqui teoricamente falando sobre isso. Mas quem vive da terra, sente a terra e luta pela terra. Então, o que dá força e coesão aos sem-terra são os seus símbolos, os seus mártires, os pedaços de roupas que eles têm, os frutos que levam, a batata, a mandioca, o animalzinho... e que mostram como a vida é concreta e que está ligada à vida e à subsistência deles. E não só deles, de todo o mundo urbano. Quem produz o feijão e arroz que comemos?
Ricardo Kotscho - Isso é que eu ia falar dos sem-terra. Apesar de muitos, são uma minoria. A maioria são os com-terra, os pequenos proprietários que produzem 70, 80 por cento do que comemos. Não seria o caso de ouvi-los também?
Leonardo Boff - Lógico, ouvi-los e denunciar que não há uma política agrária no Brasil. Há uma política para a grande agroindústria, que é para a exportação, não para o mercado interno. Eu mesmo vi, estando anteontem com camponeses gaúchos desesperados, pessoas se suicidando, porque o preço da cebola, da batata, nunca houve tanta produção e é degradado o preço. Os meus parentes que cultivam lá em Concórdia, lá onde está a Sadia, em sessenta dias ganham 1.000 reais. Com uma superexploração, trabalhando quinze, dezesseis horas por dia. Se diz: "Todo mundo pode comer frango". Mas é à custa de camponeses que estão morrendo, não conseguem mais manter esse preço achatado. Não se escuta num diálogo o que significa isso, como a cidade vive do campo. Então, acho que uma dessas grandes causas – e é planetária – é essa. E a segunda é mais social. É a questão da cidadania. Porque se opõe à exclusão, que é um fenômeno novo. Antes, você tinha o marginalizado, o que estava à margem do sistema lutando para entrar e se desenvolver. Aquele que está fora hoje não se confronta com o sistema, se confronta com a morte. Porque pra ele não há projeto de saúde, nem de cesta básica, nem de casa, nem de escola, nada, ele está à margem. Qual a proposta para esses excluídos? É a cidadania como participação, uma sociedade em que todos possam caber. Neste país cabem 70, 80 milhões, os demais não cabem. São zeros econômicos, são excluídos, não entram na contabilidade. Para eles, o Estado não propõe nada. Então, aí entra o resgate da cidadania, não como valor meramente cívico, você ter direitos. Não, você tem direito de participar, você tem direito a um pedaço de terra, direito de comer, porque é filho dessa terra. E aí acho que a alternativa é criar economias paralelas, formas de produção alternativas, de melhoria do ingresso, que é o espírito cooperativo. Criar cooperativas o mais possível, como a gente está incentivando de novo a fazer. Pegar pneus e dos pneus fazer sandálias para vender, fazer artesanato, fazer quentinhas, mil formas como esses excluídos se organizam para poder garantir a subsistência. O espírito cooperativo seria uma alternativa fantástica para uma produção que não está no mercado, está à margem do mercado, e que satisfaz necessidades e atende necessidades, e criaria uma nova dinâmica social, romperíamos a ditadura do mercado, que se impõe a todo mundo, quem não está no mercado não existe, e apeado dele morre.
Roberto Freire - Estou sentindo que neste momento você está falando muito a respeito do que vejo como pensamento anarquista. Autogestão, por exemplo, é a coisa mais libertária que existe em matéria de produção.
Leonardo Boff - Cooperativas autogestionáveis, assim elas se definem, e há grupos pensando seriamente nisso.
Ricardo Kotscho - Já está acontecendo nos assentamentos.
Leonardo Boff - Exato. E resgatar a partir dessa categoria o que está sendo negado hoje – desenvolvimento, porque até hoje a Teologia da Libertação se fez contra a teoria do desenvolvimento, que vinha de cima para baixo, vinha do Estado. Agora tem de ser o desenvolvimento como categoria do sujeito coletivo do povo, das comunidades.
Marina Amaral - A doutrina cristã, como o senhor disse, é uma doutrina revolucionária. Não consigo entender como as pessoas que têm essa doutrina em mente vão para esses seminários, aceitam uma estrutura de Igreja que sabem que vai ser aquela. Queria entender por que essas pessoas procuram a Igreja e por que essa rebelião afinal é tão pequena perto de uma Igreja tão grande.
Leonardo Boff - Esse é um dos trabalhos pedagógicos mais sutis que a instituição faz sobre seus quadros. O padre, o seminarista é educado para ter um verdadeiro casamento com a instituição, aquilo que a pessoa dá em termos de libido, de amor à sua companheira, à sua mulher, ele é educado a dar à sua Igreja. Agora, há uma fase em que o padre desperta. Geralmente quando cai na vida real, como pároco, como agente de pastoral, aí ele se dá conta de que essa Igreja é uma grande madrasta. Que usa a força dele, sua libido, sua inteligência em favor dos interesses institucionais dela e não das pessoas humanas. Que ela não se interessa muito pelos problemas do homem da rua, que tem problema com limitação de natalidade, com eventual aborto, com fracasso no matrimônio e a vontade de começar um outro. Ela não se interessa, ela é fria e sem piedade e aplica a doutrina. E aí o padre entra em crise, fica entre o pastor que sente o próximo e a subjetividade que foi criada nele de ser o representante da instituição, da doutrina, e entra num conflito e muitos sucumbem nesse conflito. Ou ele abre e entra num novo estado de consciência e é um pastor que viola as doutrinas, ou ele se enrijece, recalca aquele mundo e fica o homem da instituição, do poder, da palavra rígida e até se transfigura. Ou então a terceira alternativa: muitos abandonam. E vão atrás das causas profundas que podem ser, digamos, o encontro com uma mulher. Não é apenas o encontro com uma mulher, quer dizer, ao encontrar a mulher e descobrir o mundo da intimidade, da ternura, da compreensão, do companheirismo, da vida como todos os mortais vivem, que é carregada de valores, e que isso foi tolhido a ele, diz: "Puxa, mas Deus não pode ser inimigo disso, Deus tem de ser pensado como um prolongamento disso ao infinito e não como corte disso". E muitos então saem. Profundamente frustrados com a instituição. Então, a educação é levada nesse sentido, por força do celibato você não pode ter o intercurso sexual. Então, a mulher se torna a tentação próxima. E você é educado a não olhar nos olhos da mulher, porque ela é tentadora, de nunca conversar com ela sozinho, sempre acompanhado de outros.
Leo Gilson Ribeiro - Mas os muçulmanos do Taliban também dizem isso.
Leonardo Boff - Porque é uma sociedade patriarcal e machista. Então, eu queria dizer o seguinte: que as mulheres tiveram uma grande função civilizatória junto aos padres. Que aqueles que se deixaram introduzir nesse diálogo, nesse encontro, se humanizaram, ficaram mais sensíveis, mais misericordiosos, mais compreensivos com o povo. Até podem viver o celibato, integrando essa dimensão, mas a ruptura foi a mulher que provocou neles, os ajudou a fazer a passagem, coisa que o seminário e nenhuma teoria teológica fazem.
Marina Amaral - E por que as freiras aceitam essa dominação? Freira não pode ser da hierarquia, freira não reza missa.
Leonardo Boff - Aí é todo um processo que a ideologia mostra. Quer dizer, você apresenta uma totalidade ideológica fechada, cheia de valores, inculca e cria uma subjetividade adequada a isso. O cristianismo poderia ser uma escola de humanidade, de generosidade, de compaixão. Se transformou num reduto de machismo, de rigidez, de ideologia compacta. Isso tem de ser denunciado, não tem nada a ver com a tradição que vem de Jesus. É uma tradição libertária, não diz "eu sou tradição", diz "eu sou a verdade, eu sou luz". E aqui o que vemos é a tradição, o império da reprodução do mesmo. Há uma geração de padres que fez mudanças fundamentais, passaram para o lado do povo, do feminino, sofreram muito, tiveram de reinterpretar o celibato e se reintegrar na dimensão mais feminina da vida e ganharam muita estatura. Desgraçadamente, a Igreja escolhe para substituir no episcopado só aqueles que vêm do estrito celibato. Um dos itens novos que introduziram do padre candidato a bispo é se nunca criticou o papa, se nunca criticou o celibato. Se alguma vez fez crítica ao celibato, não é nomeado bispo. O que revela a fraqueza da instituição. Ela não é mais vulnerável ao diálogo, ao crescimento, ela tem de usar a força simbólica para se impor.
Sérgio de Souza - E quem mais denuncia isso, além dos teólogos da Igreja?
Leonardo Boff - Na Igreja há um discurso absolutamente farisaico. Você conversa com um bispo, se ele está entre caros amigos, diz tudo o que estou dizendo. Cai na rua, "não posso dizer porque vou ser demitido, vai ter briga com o Vaticano, a CNBB cai em cima de mim, não posso falar". E muitos teólogos que pensam assim têm de dar aulas segundo os ditames, senão são depostos pela cátedra, "perco minha paróquia, caio no mundo, e tenho de buscar outro caminho". Então, a Igreja, a instituição, essa instância central de governo, obriga as pessoas a ser falsas por elas mesmas, hipócritas.
Chico Vasconcellos - Como se constitui o poder na Igreja?
Leonardo Boff – Primeiro, o Vaticano, com os seus mistérios, os encarregados da educação, dos bispos, das religiosas, dos padres, da doutrina, que são verdadeiros ministérios. O papa em si com seus ministérios, um governo centralizado onde tem informação do mundo inteiro, informação hoje já informatizada.
Chico Vasconcellos - Quantos homens fazem parte desses ministérios?
Leonardo Boff - Uma vez perguntaram a João XXIII quantos trabalhavam no Vaticano, ele disse: "Metade...". Acho que são 11.000 funcionários.
Chico Vasconcellos - Esse colégio de cardeais que dominam, quantos são?
Leonardo Boff - Cardeais são uns 150, mais ou menos, no mundo. O Vaticano deve ter uns trinta.
Ricardo Kotscho - O papa não é uma rainha da Inglaterra?
Leonardo Boff - Não, ele escolhe. A força dele é poder escolher os seus assessores diretos, que é o chamado Corpo do Papa, pessoas que pensam e agem como ele. A quem ele delega todo poder.
Frei Betto - O projeto estratégico é dele?
Leonardo Boff - O projeto estratégico é dele. Por outro lado, há uma grande resistência da máquina, de quem está por baixo. Por exemplo, temos três, quatro cardeis da Cúria Romana que fazem o nosso jogo, que nos defendem, empurram nossos textos em cima dos cardeais, mandam briefings, a luta ideológica é bárbara lá dentro.
Chico Vasconcellos - Desses cento e tantos cardeais, quantos são do Primeiro Mundo e quantos são do Terceiro?
Leonardo Boff - Hoje, 52 por cento dos católicos vivem no Terceiro Mundo. Para mostrar uma certa contradição entre o poder da base e o poder da representação, isso significa, primeiro, que o cristianismo hoje é uma religião do Terceiro Mundo, que teve origem no Primeiro Mundo. Isso é importante constatar. Segundo, que esse poder real, que é numérico, que garante o futuro institucional da Igreja, não é adequadamente representado no aparelho central do Vaticano. Acho que um terço dos cardeais é de italianos, mais de cinqüenta cardeais italianos, o que é uma inflação fantástica em termos de poder. E acho que dois terços são do Primeiro Mundo. Isto é, Europa, Estados Unidos, porque aí joga muito uma questão numérico-econômica, quer dizer, poder real da Igreja. Uma diocese como Nova York, como Chicago, que são extremamente ricas, ou como o Rio de Janeiro, ganha cardeal por quê? Porque articula interesses da Igreja, que tem reprodução na economia, nos investimentos, essa coisa toda, e que são reforço na aliança que o Vaticano faz com os poderes desse mundo, porque é um poder que busca aliança com outros poderes. É um poder espiritual, mas é um poder que sempre tem algo a dizer na política, nos negócios também.
Leo Gilson Ribeiro - Existe alguma tendência dissimulada de um certo racismo na Igreja, com uma predominância do hemisfério norte branco?
Leonardo Boff - Eu não diria racismo, diria uma discriminação cultural. Eles consideram a grande cultura da Europa, que é a cultura que nasceu cristã. Agora, eles têm um senso de eqüidade no sentido de universalidade. Isso o Vaticano herdou da tradição romana. Então, eles têm dois corpos grandes, o corpo doutrinário, que representa o corpo jurídico dos imperadores, que é a Congregação da Doutrina e da Fé, que zela pela unidade dos símbolos e da doutrina; e o segundo corpo, que é a fábrica de fazer bispos, a Congregação dos Bispos. Isto é, quem você vai eleger no mundo que esteja afinado com o governo central e ao mesmo tempo enraizado na sua cultura. Então, a importância do dom Lucas Neves é que ele foi cardeal da fábrica de bispos.
Leo Gilson Ribeiro - Uma linha de montagem...
Leonardo Boff - Linha de montagem. Então, essas duas instituições são fundamentais para o Vaticano. Por outra parte, é um corpo contraditório, porque ele, na força de atender várias culturas, na África, nos Estados Unidos, aqui, na Europa, Leste etc., não pode ter um discurso muito uniforme, porque se torna incompreensível. Por isso, o Vaticano produz um discurso profundamente ambíguo, um discurso de grande multinacional, que representa muitos interesses e para preservar o papa como príncipe da unidade, de fé, de política, de liturgia...
Leo Gilson Ribeiro - É o unipartidarismo?
Leonardo Boff - É o partido do papa, quem se opõe a ele é logo perseguido.
Ricardo Kotscho - Existe uma possibilidade, mesmo remota, de que alguém como o dom Paulo Evaristo possa ser eleito papa?
Leonardo Boff - Possibilidade existe, quer dizer, é o imponderável. Olha, neste momento os cardeais estão viajando muito, porque eles se dão conta de que o pontificado do papa já se encerrou em termos de estratégia, de tudo... ele já fez o que tinha de fazer, e eles governam a Igreja sem Wojtyla, supõem Wojtyla já morto em termos estratégicos. Então, a luta agora é entre duas grandes tendências. Uma é a tendência wojtyliana, porque mais da metade dos cardeais eleitores foi feita por ele e existe uma espécie de pacto entre os cardeais, que é o de você sempre respeitar a memória daquele papa que o fez cardeal – é a que eles chamam de "tendência-testemunho", que parte do seguinte: a Igreja é a única portadora da revelação da verdade, não tem de dialogar com as outras igrejas ou religiões. A segunda, que é de Paulo VI e João XXIII, hoje representada pelo cardeal Martini, de Milão, é chamada de "tendência do diálogo e da mediação". Que quer dizer dialogar com todas as culturas, religiões, caminhos espirituais, porque todas têm Deus por trás e você tem algo a aprender. E propiciar esse diálogo para criar ambiente de paz religiosa, paz política, valorização da dimensão espiritual nos humanos, sejam muçulmanos, budistas ou cristãos, e o papa como interlocutor grandioso de uma cultura ocidental. E o cardeal Martini é um jesuíta altamente inteligente, viveu no Oriente Médio, entre os muçulmanos, domina o judaísmo, foi professor de judaísmo a vida inteira, tem um diálogo fantástico com as religiões do Oriente, que conhece profundamente. Então, é um dos grandes cardeais. Ou o cardeal Sing, de Hong Kong, educado em Roma. Mas que tem toda a tradição chinesa. É um dos fortes candidatos. Então, tem o cardeal Ruini – que é o mais fiel seguidor do Wojtyla, que faz a política com os grandes, mesmo que seja a máfia, contanto que reforce a instituição – como um dos grandes candidatos daquela ala. Da outra ala tem o Martini e o cardeal Sing. Então, hoje se dá essa polêmica. E os cardeais já estão viajando, trocando informações, com um deles até já conversei. Estão fazendo consultas, porque se dão conta de que, num processo de mundialização, ou a Igreja capta esse movimento ou ela se isola no Ocidente. Eles estão numa grande encruzilhada. E se dão conta de que todo o fluxo da história está passando pelo Sudeste asiático. Lá está o novo centro econômico mundial...
"HOUVE UM MOMENTO EM QUE EU
TINHA PERDIDO A ESPERANÇA, QUE
É PIOR DO QUE PERDER A FÉ ."
Ricardo Kotscho - Há possibilidade de termos um papa chinês, é isso?
Leonardo Boff - Possivelmente, oriental.
Ricardo Kotscho - Então fale um pouco mais dele, nunca ouvi falar.
Leonardo Boff - Uma vez participei de um encontro que houve em Hong Kong, um grupo de teólogos aqui, você estava, não é, Betto?
Frei Betto - Estava, foi quando a gente voltou da China, ele perguntou sobre as CEBs.
Leonardo Boff - É um homem muito aberto, fez teologia em Roma, conhece Roma, mas profundamente chinês, querendo abrir para a China, querendo que a Igreja que está lá se enraíze dentro da China, que não fique apenas um pedaço do Ocidente lá dentro. Quer dizer, um homem do nosso lado. Ele encarna o cristianismo. Os cardeais, quando vão eleger o papa, fazem uma análise de conjuntura muito grande. Primeiro, captar o sentido de "para onde vai o cristianismo, quais são os seus desafios, que chances ele tem de crescer ou de diminuir na concorrência com os muçulmanos que temos de fazer, porque em 2010 eles serão mais que nós", porque há uma conversão em massa da África para os muçulmanos. E ainda que a Igreja tenha de fazer alianças para manter os seus valores ocidentais – família indissolúvel, não aceitação do aborto, da contracepção... aquela coisa toda. Quer dizer, "que alianças políticas temos de fazer para nos mover, manter e criar civilizações" – medem cada país. Estados Unidos, América Latina etc. Quando acabam de fazer essa análise – "Qual de nós aqui é o mais adequado a essa conjuntura?" –, então pintam o cenário e, para esse cenário, há um papa que seja razoável. Aí entram a idade, a cultura dele, a capacidade de diálogo, as alianças que ele tem na base para poder ter um governo que o sustente, porque a Cúria pode boicotar, e ela é terrível nisso. E é aí que eles elegem. E há o imponderável, sabe? Conversei com um grande vaticanólogo, o Zizola, que entende disso, e ele me disse: "Esse papa humilhou tanto os cardeais, as conferências nacionais, que ninguém mais quer saber dele. Querem derrubar o wojtylianismo. Vai ser uma desgraça, foi um retrocesso enorme. A Igreja se enrijeceu, voltada para dentro, criou conflitos em todas as conferências, teólogos punidos, bispos castigados, conferências rebeladas porque foram muito humilhadas, submetidas por Roma". Então, ninguém quer saber dele e esses cardeais que foram feitos por ele também sabem, pensam maior.
Ricardo Kotscho - Qual é o significado de o papa vir ao Brasil pela terceira vez?
Leonardo Boff - Isso é da política latino-americana, reforçar o lado mais conservador, ligado à família tradicional. Qual é a família que eles defendem? A do pequeno-burguês, estabelecida, fiel etc., que não é a família real da sociedade contemporânea.
Sérgio Pinto - E o governo brasileiro, durante o seu embate com o Vaticano, como se portou?
Leonardo Boff - Aqui, não sei. Sei que o caso da Teologia da Libertação movimentou estratos importantes da burguesia européia e católica. O cardeal Ratzinger, de vez em quando, se encontra com grandes industriais alemães, passam o dia juntos, eles têm subsidiado enormemente as causas da Igreja contra a Teologia da Libertação, que vêem aliada ao marxismo, processo de instabilidade social, e os governos entraram, os próprios Estados Unidos, com aquele famoso texto da Carta de Santa Fé, que dizia que a Teologia da Libertação é um risco para a segurança dos Estados Unidos, por ser um fator de desestabilização na América Latina. E a partir daí foi colocado um posto de vigilância muito maior sobre os bispos, comunidades de base, houve prisão, tortura, ao largo do continente todo há uma infinidade de mortos e vítimas desse processo. Uma vez consultei o ministro das Relações Exteriores, o Silveira, que foi de dois governos, e ele me disse: "Fomos instruídos para repassar ao Vaticano a atividade ideológica e política que a fé vinha recebendo no Brasil mediante padres de formação marxista e que a Igreja, não tanto o governo" – porque sabiam que era complicado prender padres –, "devia fazer a vigilância sobre os seminários e esses quadros".
Roberto Freire - "Comunismo" é ainda usado como argumento?
Leonardo Boff - Um dos argumentos que o Ratzinger usou num encontro de teólogos alemães, e que deve ser tomado em consideração, foi: "O marxismo morreu como ideologia, morreu como força política organizadora dos Estados, mas ele sobrevive na Teologia da Libertação, que funciona como cavalo de Tróia para penetrar no meio dos pobres. Devemos redobrar a vigilância sobre essa teologia".
Ricardo Kotscho - Houve algum momento em que você quase desanimou, perdeu a fé, que você tenha pensado "Deus não existe, não é possível", houve esse momento?
Leonardo Boff - Houve um momento e eu até disse isso, porque tinha perdido a esperança. Que é pior do que perder a fé. Quando o Vaticano interveio na Vozes em 1992, depuseram toda a direção, nomearam um alemão como interventor, que a primeira coisa que fez foi pegar os nossos livros e mandar picotar e queimar. Pegou o arquivo todo da Teologia da Libertação, aquela coleção de cinqüenta tomos, trabalho fantástico de bispos, de teólogos de toda a América Latina, pegou aquilo e jogou no lixo, para ser levado pelos caminhões: ainda consegui correr atrás e salvar. E disse que a Vozes, eu e a Teologia da Libertação fizemos uma chaga muito grande na Igreja e que essa chaga devia ser sanada. E deu uma guinada fantástica na Vozes, que passou a ser uma editora de direita, fechada, contra a Teologia da Libertação. E virou censor pessoal meu. Cada artiguinho que eu fazia ele corrigia tanto, que não dava nem pra publicar. Senti uma profunda humilhação da inteligência: uma editora que ajudou a pensar o Brasil mais à esquerda, o cristianismo mais de libertação, sofrer esse tipo de intervenção. Aí eu digo: "Não, isso é injusto. Um editor que manda queimar livros, como pode ser um editor?"
Chico Vasconcellos - A minha última pergunta seria a que sua mãe lhe fez: como é que um padre não vê Deus? Como é, você já viu Deus, como é Deus?
Leonardo Boff - Acho que a gente vê com os olhos interiores. Talvez a gente não veja, mas sinta Deus. Acho que toda vez que a gente sente entusiasmo, de levantar de manhã e ter de começar o dia, ter capacidade de estender a mão ao outro... Deus não é um objeto, não é uma entidade, é uma suprema paixão, suprema energia, o que os gregos de uma maneira genial disseram e eu gostaria de dizer, porque ela está presente em nossa língua, que é a palavra "entusiasmo". Em grego, entusiasmo significa ente os mos "ter um Deus dentro". Então, todo o entusiasmo é a essência da vida, é a energia que faz a vida viver. Creio que é essa realidade que penetra em tudo e não se deixa captar, e sem a qual não entendemos nosso vigor, nossa esperança, nosso sonho, nosso entusiasmo, que escapa continuamente e, ao mesmo tempo, nos desafia pra frente e pra cima. Penso que isso é Deus. E cultivar esse espaço, manter a devoção, manter o encantamento e deixar que isso se irradie é obra de alguém que é inteiro. Porque, como disse Santa Teresa, quando se trata de comer galinhas, então comer galinhas, quando se trata de jejuar, então jejuar, quando se trata de lutar ao lado dos sem-terra, lutar com os sem-terra, quando se trata de escrever um artigo, ser inteiro na escritura do artigo. Acho que essa capacidade é aquilo que é a ressonância, que é o resultado da presença secreta, sutil, dessa paixão, desse fogo interior, que nós chamamos Deus.